Tão geladas as pernas e os braços e a cara que pensei em abrir a garrafa para beber um gole, mas não queria chegar na casa dele meio bêbado, hálito fedendo, não queria que ele pensasse que eu andava bebendo, e eu andava, todo dia um bom pretexto, e fui pensando também que ele ia pensar que eu andava sem dinheiro, chegando a pé naquela chuva toda, e eu andava, estômago dolorido de fome, e eu não queria que ele pensasse que eu andava insone, e eu andava, roxas olheiras, teria que ter cuidado com o lábio inferior ao sorrir, se sorrisse, e quase certamente sim, quando o encontrasse, para que não visse o dente quebrado e pensasse que eu andava relaxando, sem ir ao dentista, e eu andava, e tudo que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era.
(Caio Fernando Abreu)
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